
Uma gelada luz cinza ondulou sobre o chão de uma caverna tão vasta que seu brilho sumia com as sombras. Uma interminável barreira de água caia na entrada, seu som ecoava pelas pedras.
Próxima da parte traseira da caverna, uma frágil gata branca se abaixou. Apesar de sua idade, seus olhos verdes eram claros e continham profunda sabedoria enquanto olhava para os gatos magros que infestavam o chão da caverna, todos agitados andando de um lado para o outro na frente da cascata cintilante: os anciãos estavam amontoados enquanto dormiam juntos nas cavidades do local; os filhotes miavam desesperadamente, pedindo comida de suas mães exaustas.
"Nós não podemos continuar assim," a velha gata sussurrou para si mesma.
Algumas caudas de distância dali, vários filhotes disputavam uma carcaça de águia. A carne dela tinha sido arrancada no dia passado, assim que suas mães a pegaram. Um grande filhote gengibre separou uma filhote malhada do osso que ela roía.
"Eu preciso disso!" ele anunciou.
A malhada se levantou e beliscou o fim da cauda do filhote cor gengibre. "Todos nós precisamos disso, cabeça de pulga!" ela o agarrou, fazendo o gatinho gengibre deixava escapar um uivo.
Uma anciã cinza-e-branca, com cada uma de suas costelas marcando sua pele, cambaleou até os filhotes e pegou o osso deles.
"Hey!" o filhote gengibre protestou.
A anciã olhou para ele. "Eu peguei presas estações atrás de estações," ela rosnou. "Você não acha que eu mereço um maldito osso?" Ela se vira e se afasta, o osso preso firmemente entre seus dentes.
O filhote gengibre fixou seu olhar nela por uma batida de coração, e então fugiu para lamentar-se para a sua mãe que estava deitada ao lado da parede da caverna. Ao invés de confortá-lo, sua mãe sussurrou algo, chicoteando a cauda furiosamente.
A velha gata branca estava longe demais para ouvir o que a mãe tinha dito, mas suspirou.
Todos os gatos estão chegando ao limite do quanto podem suportar, ela pensou.
Ela assistiu a anciã cinza-e-branca andar pela caverna e jogar o osso de águia na frente de uma gata mais velha ainda, que estava em uma cavidade com o focinho repousando nas patas dianteiras. Seu olhar desanimado estava fixado em uma parede distante da caverna.
"Aqui, Água Enevoada." A anciã cinza-e-branca usou a pata para empurrar o osso e aproxima-lo da outra. "Coma. Não é muito, mas pode te ajudar."
O olhar indiferente de Água Enevoada brilhou sobre sua amiga e depois se dispersou novamente. "Não, obrigada, Geada de Prata. Eu não estou com apetite, não desde que Pena Quebrada morreu." Sua voz latejava de dor. "Ele estaria vivo se aqui houvessem presas suficientes para comer." Ela suspirou. "Agora eu só quero me juntar à ele."
"Água Enevoada, você não pode—"
A gata branca se distraiu da conversa das anciãs quando um grupo de gatos apareceu na entrada da caverna, se chacoalhando para tirar a neve de seus pelos. Vários outros gatos se levantaram e correram para recebe-los.
"Vocês pegaram alguma coisa?" um deles perguntou ansiosamente.
"Verdade, onde estão suas presas?" outro demandou.
O líder dos recém-chegados balançou a cabeça em tristeza. "Me desculpem. Não havia o suficiente para trazer de volta.".
A esperança se esvaiu dos gatos na caverna como a névoa de baixo do sol forte. Eles se entreolharam e se afastaram, suas cabeças abaixadas e as caudas se arrastando no chão.
A gata branca assistia eles, mas virou a cabeça ao sentir que um gato estava indo até ela. Apesar de seu focinho estar cinza pela idade e seu pelo dourado fino e desigual, ele andava com a confiança que mostrava que um dia ele tinha sido um gato forte e nobre.
"Meia Lua," ele cumprimentou a gata branca, se sentando próximo dela e enrolando a cauda em volta de suas patas.
A gata branca soltou um leve ronronar em divertimento. "Você não deveria me chamar assim, Rugido do Leão," ela reclamou. "Eu venho sendo Contadora das Pedras Pontiagudas há muitas estações."
O gato malhado de dourado bufou. "Eu não ligo há quanto tempo os outros te chamam de Contadora de Pedras. Você sempre será Meia Lua para mim."
Meia Lua não respondeu, entretanto esticou a cauda e a repousou no ombro do velho amigo.
"Eu nasci nessa caverna," Rugido do Leão continuou. "Mas minha mãe, Cervo Tímido, me contou do tempo antes de virmos para cá—quando você vivia ao lado de um lago, abrigada de baixo das árvores."
Meia Lua suspirou fracamente. "Eu sou a única gata restante que lembra do lago, e da jornada que fizemos para vir até aqui. Mas eu vivi três vezes mais luas aqui nas montanhas do que no lago, e a interminável correnteza da cascata agora ecoa em meu coração." Ela pausou e, piscando, pergunta. "Por que está me contando sobre isso agora?"
Rugido do Leão hesitou antes de responder. "A fome pode matar a todos nós antes que o sol brilhe de novo, e não há mais espaço nessa caverna." Ele esticou uma pata e acariciou a pelagem do ombro de Meia Lua. "Algo precisa ser feito."
Os olhos de Meia Lua se arregalaram enquanto olhava para ele. "Mas nós não podemos deixar as montanhas!" ela protestou, sua voz estava sem fôlego graças ao choque. "Asa do Gaio prometeu; ele me fez Contadora das Pedras Pontiagudas porque essa foi a casa destinada para nós."
Rugido do Leão encontrou com o olhar os intensos olhos verdes dela. "Você tem certeza de que Asa do Gaio estava certo?" ele perguntou. "Como ele poderia saber o que iria acontecer no futuro?"
"Ele tinha que estar certo," Meia Lua murmurou.
Sua mente a levou de volta para o dia da cerimônia, muitas estações atrás, quando Asa do Gaio fez dela Contadora das Pedras Pontiagudas. Ela estremeceu quando ouviu novamente a voz de Gaio, cheia de amor por ela e tristeza por saber que aquele destino significava que eles nunca ficariam juntos. "Outros virão depois de você, lua após lua. Escolha-os bem, treine-os bem—confie o futuro de sua Tribo à eles."
Ele nunca diria isso se ele também não quisesse ficar aqui.
Meia Lua deixou seu olhar passear pelos outros gatos: seus gatos, agora magros e com fome. Ela sacode a cabeça em tristeza. Rugido do Leão estava certo: Algo precisava ser feito se eles quisessem sobreviver.
Aos poucos, ela percebeu que a gelada luz cinza na caverna estava brilhando, parecida com ouro quente, como se o sol estivesse nascendo na barreira de água em queda da cascata—mas Meia Lua sabia que naquela noite estava nevando.
Ao seu lado, Rugido do Leão estava sentado limpando calmamente suas orelhas, enquanto os outros gatos da caverna nem notavam a presença da chama dourada.
Nenhum gato pode ver isso além de mim! O que isso deve significar?
Banhada na luz brilhante, Meia Lua relembrou como, quando ela se tornou Curadora, Asa do Gaio tinha dito que seus ancestrais a guiariam em suas decisões a serem tomadas—então, algumas vezes, ela via coisas estranhas que depois significavam mais do que da primeira vez que apareciam. Ela nunca tinha sido informada diretamente por seus ancestrais, mas aprendeu a olhar para os sinais.
Possíveis significados correram pela mente de Meia Lua, densos como flocos de neve em uma nevasca. Talvez, o tempo quente venha a chegar cedo. Mas em que isso ajudaria quando se há tantos de nós? E então ela se perguntou se o sol realmente estava brilhando em algum lugar, onde exista calor e presas e abrigo. Mas no que isso nos ajudaria, aqui nas montanhas?
A luz do sol cresceu mais forte e mais forte, até que Meia Lua não aguentava mais olhar no reflexo da água. Ela relaxou quando uma nova ideia floresceu como uma rosa em sua mente.
Talvez Rugido do Leão esteja certo, apenas alguns de nós deveriam continuar aqui enquanto, talvez, os outros deveriam procurar pelo lugar onde o sol nasce, para fazer uma nova casa de baixo da mais brilhante luz de todas. Um lugar onde eles estariam seguros, se alimentariam e até mesmo teriam espaço para nutrir as futuras gerações de filhotes.
Meia Lua se deliciava com a luz do sol em seu peito, ela havia achado a certeza que faltava em si mesma. Alguns de seus gatos iriam ficar, um grupo pequeno suficiente nas montanhas para o sustento dos outros, e o resto da Tribo iria para uma jornada atrás do sol nascente, para achar uma nova casa.
Mas eu não quero deixar a caverna, ela pensou. Eu vou ver o crepúsculo dos meus dias aqui, uma vida inteira longe de onde eu nasci. E talvez.... Apenas talvez... Encontrarei com Asa do Gaio novamente.